Nuvem do acaso
Quase nada de um pouco de tudo.
A Grande Porca.
Já em 1990 era assim:
Parece-me que hoje nada mudou e que, pelo contrário, piorou.
Está tudo à mesa do Estado numa chafurdice inimaginável. A corrupção, o compadrio, o neopotismo, a partidarite. A política? Uma grande porca com porquinhas e porquinhos a mamar o Estado.
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A PDI.
Estou lá, com grande desgosto e desânimo. Por causa da idade.
A P…da idade é uma triste realidade que nenhum decreto governamental poderá alterar.
Traz com ela inesperadas doenças (as p…) próprias da idade (“avançada”). Mas, dizem-me os jovens (que muito mais tarde, não repetirão o discurso) que a muita idade é o ponto alto do ser humano, em experiência e, nomeadamente, em sabedoria. Ora, sendo talvez evidente, tal experiência tem, no fundo, pouca adesão à realidade da expectativa humana.
Experiência tem-se ao fim de muitos anos, quer se queira quer não: boa ou má, útil ou descartável, saudosa ou de pesadelo, frágil, que até se esquece, ou forte porque sempre presente.
E “ós pois”? Eu, se pudesse trocava tudo aquilo por ter menos 10, menos 30, menos 50 anos. Teria a experiência própria da idade e uma sabedoria (boa ou má) que, na realidade e conforme às leis da vida, cresceria comigo na alegria e na tristeza, no sucesso e na derrota.
Troco, sem hesitar, a sabedoria pela juventude, porque uma cresceria comigo e a outra desapareceria com o tempo. Claro que sim! A procura do milagroso elixir da vida, que sempre foi esperança humana e o sucesso da medicina e das técnicas de hoje, no prolongamento da vida com o retardar da velhice, são provas disso.
Antes morria-se aos 40-e-tais anos, hoje aos 70-e-tais-anos, amanhã aos 120, dizem.
Antes, saltava da cama num ápice, corria pelas ruas em fato de treino depois de regressar cansado do trabalho, nadava aos fins-de-semana (mal mas melhor do que o Alto Chefe), dormia como um anjo, comia e bebia o que bem me apetecia, não tomava remédios, nada no corpo era sinal de qualquer mal.
Era jovem com a sabedoria própria do passado, saudável.
Hoje? Uma desgraça, a dificuldade em saír de qualquer posição, a falta de fôlego num passo mais apressado, um inesperado e constante esquecimento (de tudo e de nada), uma dieta para isto e para aquilo, uma dúzia de pílulas para isto e para aquilo.
Tudo atinje a negação do bem da sabedoria a qual, ao contrário, me empurra na descoberta (nos livros, na net, nas conversas com os idosos da minha idade) dos males que me afligem e que são o desânimo dos médicos.
A idade? A PDI, a p… da idade? Uma enorme chatice, diria mesmo mais, seguindo os meus impulsos franceses, “une véritable m…”.
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O conto do vigário.
“Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.
Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa.
Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.» «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.
Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos negociantes de gado como ele a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se, se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem. Houve então a troca de outro olhar.
O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo, disse, pois queria as coisas todas certas. E ditou o recibo – um recibo de bêbedo, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, e «estando nós a jantar (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbedo...), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.
Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê- la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira... E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.
Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.
Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário «nem eu estava tão bêbedo que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça foi mandado em paz.
O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem.
Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade – nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax”.
Contado por Fernando Pessoa.
Publicado pela primeira vez no diário Sol, Lisboa, ano I, nº 1, de 30/10/1926, com o título de «Um Grande Português». Foi publicado depois no Notícias Ilustrado, 2ª série, Lisboa, 18/08/1929, com o título de «A Origem do Conto do Vigário».