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O "imperialismo" e o embondeiro

Terça-feira, 19.03.13

Recordações da guerra - Moçambique (1970-1972), Omar

“...puras verdades, já por mim passadas. Oxalá fossem fábulas sonhadas.“ Luís de Camões.

Lembro-me de nesse mês de Janeiro 73 já nos considerávamos “cocuanas“ e não os inexperientes “xecas“ recém-vindos da Metrópole, do “puto“ como lá se dizia.

A nova missão da CENG 2736 era Omar, na margem sul do rio Rovuma.

Omar, no final de uma picada por nós aberta durante a “Nó Górdio“ (1970), tortuosa, ao longo de território perigoso e que agora era necessário alargar e desmatar, vinte metros de cada lado. Omar, primeira posição portuguesa a render-se aos “turras” depois do 25 de Abril.

Conheci-a muito bem, estive nela enfiado muito mais de um mês depois de terem sido concluídos os trabalhos, um ano antes, de abertura de um estacionamento e de construção de uma pista de aviação.

Sim lembro-me, passados mais de trinta anos, de Omar escaldante e inóspito buraco com a sua tabuleta com a direcção e os kilómetros para Lisboa.

                                      

Numa soalheira manhã para lá partimos de Mueda, com uma muito forte e experiente protecção e a minha experiência bem gravada na cabeça, experiência resultante de erros passados, alguns mortíferos.

                                     

http://3ccomandosmocambique.multiply.com/video/item/137/137

Nunca atravessar uma clareira (em geral uma "machamba") como se fosse o Rossio num Domingo sem trânsito. Por o termos feito, como “xecas“ que na altura éramos, sofremos dois mortos. Foi puro e simples tiro ao alvo.Nunca abrir o estacionamento no alinhamento da picada recém-aberta porque assim eramos um alvo bem para o morteiro. Decidi depois que a nossa “pernoita” devia estar desviada num cotovelo. Era aí que parávamos, que construíamos as nossas barreiras de terra e que dormíamos debaixo das viaturas. Acabaram-se as angústias de meio da noite com o som da saída, o silvo da trajectória e os rebentamentos antes e depois de nós.

Ao longo daqueles quase dois anos de guerra, testemunhei a invisivel passagem do cavalo esverdeado do Apocalipse no qual cavalga, com outras, a fome. Aprendi a gostar de comer cebolas cruas como se maçãs fossem, a desenterrar nas machambas a gostosa mandioca. Passei a rejeitar maquinalmente pêssego em calda, carne e sardinhas enlatadas, leite condensado, enfim quase tudo aquilo que fazia parte da ração de combate. Comi cobra, encontrada de manhãzinha ao acordar, enroscada no calor do motor da máquina debaixo da qual dormia, e que é comida sensaborona. Comi porco-espinho, muito rijo e adocicado. Percebi como nas guerras de antigamente se comia tudo: ervas e raízes, cães, gatos e ratos, cavalos e homens. Percebi, também, como nas de hoje se continua a comer tudo e porque é que desaparecem populações inteiras de jardins zoológicos e de aquários: é a passagem do cavalo esverdeado. No meu caso era um cavalo sem côr no qual cavalgava o enjôo.

Enfim lembranças que não gosto de lembrar.

                            

Eram pouco mais de sessenta kilómetros sempre planos, de mato rasteiro que permitia um progresso rápido ou de embrenhada floresta que dificultava os trabalhos e lhes diminuía o ritmo. Havia de tudo, desde o pequeno e frágil arvoredo até às velhas e enormes árvores. Para o derrube destas como a potência de uma só máquina era insuficiente recorríamos ao expressamente proíbido pelos chefes instalados em Nampula, técnica que eu denominei “da bicha de pirilau“. Consistia ela em colocar-se atraz da primeira máquina, de lâmina encostada ao tronco, mais duas em bicha, triplicando assim a força total. Era remédio santo.

Mas há sempre excepções e ela ocorreu na forma de um embondeiro plantado mesmo no meio do enfiamento da nossa picada. Depois de tudo tentado e de uma boa hora de trabalho, desisti. Resolvi armar-me em paisagista, em técnico de prevenção rodoviária, e fazer uma bela rotunda, quebrando a monotonia daquela imensa recta, evitando hipotéticos acidentes por excesso de velocidade ou por adormecimento ao volante. O imponente embondeiro lá ficou, coitado, com o tronco cheio das feridas inflingidas pela lâmina dos “dozer“. No seu tronco mandei colocar uma mensagem para o inimigo, escrita na tampa da caixa de uma ração de combate, que se rendessem à engenharia que era tropa amiga e de confiança.

                                       

E continuou-se o trabalho rotineiro mas poeirento, sob um sol escaldante e sempre sob a ameaça deles e de um ataque de...abelhas que tudo e todos paralizava. Havia dias em que não conseguíamos progredir mais do que quinhentos metros, tal era a densidade da floresta e a robustez das árvores, e isto para desespero dos chefes instalados em Nampula, desconhecedores da realidade daquele mato.

Um dia recebi via rádio uma ríspida ordem para avançar mais depressa. Era considerado que estávamos a ser lentos. Os “crânios” da guerra consideravam-nos turistas passeando naquele lindo matagal no meio de musicais e surpreendentes emboscadas, recebendo, dia-sim dia-não, gostosa e típica morteirada. Ora m...

Respondi de imediato e, no meio de profusos Vexas e de respeitosamente, dizia que iria obedecer de imediato mas que solicitava respeitosamente que aquela aparente alteração da ordem de operações fosse confirmada pela mesma via, evitando as consequências de um malentendido da minha parte. Na eventualidade de uma mudança de planos, se não fossem feitos o alargamento do itinerário e a desmatação de vinte metros, a engenharia chegaria a Omar no dia seguinte, garantia eu. Não recebi resposta e não voltaram a chatear.

No regresso de Omar, dificil e perigoso porque eles sabiam exactamente por onde iríamos passar, chegámos à “minha” rotunda, mas do embondeiro nada. Só um largo cepo com um cartão espetado no topo. A enorme árvore tinha sido laboriosamente cortada à catana e no verso da tampa de cartão que lá tinha deixado li a resposta à minha mensagem e que era mais ou menos esta: “O que a força bruta das máquinas imperialistas não foi capaz conseguiu a força do povo oprimido. “

 

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publicado por Alea às 10:48


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